Por Observatório da Imprensa
Artigo: Sally
Burch*
Com a entrada em vigência da Lei
Orgânica de Comunicação no Equador, em 25 de junho de 2013, coloca-se um novo
desafio de grande transcendência para tornar realidade os direitos cidadãos à
comunicação reconhecidos pela Constituição de 2008. Isto é, diante do atual
predomínio do modelo mercantil-privado-oligopólico, como gerar e implementar
novos modelos de comunicação que devolvam à cidadania o controle sobre seus
processos comunicativos?
Nesta época em que a vida política de
nossas sociedades, a organização e mobilização social, a disputa por ideias e
modelos de sociedade e das relações sociais e interpessoais, encontram-se cada
vez mais atravessadas pelos meios e tecnologias da comunicação, torna-se
imperativo para os processos democráticos analisar e repensar as formas de
organização, gestão e controle dos meios. De fato, a indústria midiática
concentra um enorme poder que hoje, sob o modelo imperante, define a agenda
pública em função de interesses privados e não presta contas a ninguém.
A Constituição equatoriana se destaca
não só por reconhecer o direito a participação nos processos comunicacionais e
a uma cidadania bem informada, como também por estabelecer um terceiro setor da
comunicação, além do privado e do público, que é o setor cidadão sem fins de
lucro – denominados como “meios comunitários” – o qual deve desenvolver-se em
igualdade de condições com os outros dois setores. Este único fato, que supera
a visão tradicional reduzida à polaridade Estado-setor privado, representa uma
mudança pragmática significativa.
A economia popular e solidária
A repartição igualitária de frequências
prevista na lei e a criação de meios comunitários seria um passo importante,
pois significa uma espécie de “reforma agrária” das ondas radioelétricas que
permitiria estabelecer um terreno mais equitativo e, tal como ocorreu com as
terras – contribuiria a sacudir as bases do modelo atual dos “latifúndios”
midiáticos. Porém isto não basta. É que promover efetivamente a participação, a
interação, novos valores e uma estética diferente na comunicação, implica
passar por profundas mudanças culturais, pois de pouco serviriam se a população
deles não se apropria.
Se bem esta mudança de modelo não
concerne somente ao terceiro setor – mas terá sentido na medida em que se
generalize – é sem dúvida nesse setor que há maior potencial transformador,
dado que a comunicação comunitária, popular ou alternativa tem no continente
uma longa história de enraizamento e compromisso com os setores populares e de
defesa da democratização da comunicação, além de rico acúmulo de experiências
em comunicação participativa. Por certo, até agora tem sofrido limitações pelas
condições de precariedade ficando em desvantagem diante dos outros setores.
Comparando com a economia, as teorias
dominantes tomam em conta unicamente a dois setores: o provado e o
público-estatal. A Constituição equatoriana de fato é uma das primeiras em
reconhecer a economia popular e solidária como uma das formas de organização da
economia, junto com a privada, a pública e a mista. Não obstante, nas políticas
públicas se continua a tratar a este terceiro setor mais como parte das
políticas sociais do que como um setor econômico com igual direito e potencial
que os demais.
Comunicação e economia política
De maneira similar, no caso da
comunicação comunitária, par que saia da marginalidade e assuma seu potencial
transformador da comunicação, requer políticas de fomento, de formação e
capacitação, de condições técnicas e fontes de auto-sustentação que a
viabilizem, e claro, de muita criatividade. E isso só será viável na medida em
que deixe de ser considerada como algo secundário, artesanal e circunscrito ao
âmbito local. Implica também desenvolver pensamento teórico e assegurar sua
plena inclusão no currículo de estudos da comunicação.
Na busca de um novo pensamento teórico
para esta mudança de paradigma, uma contribuição chave vem da escola de
pensamento da economia política da comunicação (durante muito tempo relegada na
academia pelo pensamento neoliberal). Esta escola, segundo Robert McChesney, é
orientada a entender os fatores que permitem produzir um sistema midiático que
fomente valores democráticos na sociedade, e pra isso persegue duas linhas
gerais de análises: por um lado, as instituições, subsídios, estruturas de
mercado, empresas, mecanismos de apoio e práticas laborais que definem um
sistema midiático ou comunicacional; e por outro lado, o papel das políticas
públicas de comunicação e como foram debatidas e definidas [McChesney, Robert
W. Digital Disconnect: How Capitalism is Turning the Internet against
Democracy, 2013, The New Press.n (pp. 64-65)].
Entre os elementos centrais que esta
linha de pensamento colocou em evidência, está o fato de que o mercado privado
da informação não funciona de acordo aos princípios do “livre mercado”, onde
supostamente a disputa regula o preço e a qualidade do produto. Isso ocorre
porque a mesma informação, diferente do que ocorre com os bens físicos, pode
ser vendida simultaneamente a muitas pessoas e não se gasta pelo uso. E
segundo, porque a fonte de lucro não é tanto a venda do produto aos
consumidores, mas a “venda” deste aos patrocinadores. Isso implica, em termos
de mercado, que importa menos a qualidade da informação que a quantidade de
consumidores.
Meios comunitários e públicos
Outro aspecto central da analise é a
conformação de oligopólios e sua vinculação com interesses afins ao poder
econômico, com o qual o jornalismo deixa de ser uma contrapartida ao poder
hegemônico e a produção midiática passa a ser funcional desse poder. Assim,
dessas analises de depreende que o sistema midiático imperante nas Américas,
articulado em torno ao setor privado, entra em contradição direta com o direito
cidadão a uma informação de qualidade, base da participação democrática. Por
isso resulta fundamental diversificar as formas de propriedade e gestão dos
meios.
No âmbito equatoriano, estes temas
apenas começam a entrar no debate. Pouco antes de ser aprovada a Lei, o governo
organizou uma Cúpula para um Jornalismo Responsável nos Novos Tempos
(Guayaquil, 19-20 de junho 2013), onde em seu discurso inaugural o presidente
Rafael Correa expos justamente uma análise [o discurso de Correa “Informação
como direito e meios como poder” pode ser lido em
http://alainet.org/active/65201 e http://www.alainet.org/active/65559 do ponto
de vista da economia política da comunicação.
Situando sua observação no
contexto da atual dominação do mundo pelo capital, cujos interesses primam
sobre os direitos dos seres humanos, o economista Correa situou como um
primeiro problema a forma de propriedade – com fins de lucro – dos grandes
meios, sendo que eles concentram m pode que cresce na medida que a informação é
um bem indispensável; e por isso mesmo, argumentou, é um setor que deveria ser
fortemente regulado em defesa dos consumidores.
Correa também se referiu à necessidade
de democratizar a propriedade dos meios e de independentizá-los do domínio do
grande capital, bem como de criar meios fora da lógica do mercado (comunitários
e públicos). No caso do Equador, recordou que a Constituição de 2008 obriga a
separação de poderes entre o setor econômico/financeiro e o setor dos meios de
comunicação.
Economia social da comunicação
Não deixa de ser significativo que
setores do poder político comecem a assumir a tese desde ha muito tempo
defendida pelo movimento pela democratização da comunicação. Porém ainda falta
muito para que se assuma a dimensão do desafio que significa desenvolver os
novos enfoques e práticas a que se refere o início deste artigo. Justamente
chamou a atenção que a Cúpula de Guayaquil não tenha incluído os aportes do
setor comunitário nas mesas de debate.
Quem de alguma maneira, sim abordou o
tema foi o acadêmico espanhol Francisco Sierra. Ele colocou a necessidade de um
jornalismo para o bem viver e uma nova ecologia da comunicação saudável,
autônoma e emancipadora. Em seu trabalho apelou para a recuperação do espaço de
domínio público, não só no que se refere aos meios públicos, mas por exemplo, a
garantias de acesso, participação e deliberação pública sobre a ação mediadora
das industrias jornalísticas.
Ao mesmo tempo lamentou que a maior parte dos profissionais
do jornalismo no mundo não tem consciência desta dimensão pública da
comunicação. “Não ha comunicação nem novo jornalismo se não ha uma afirmação da
comunicação como um direito social e da informação como um bem comum”,
enfatizou. Falou de recuperar a capacidade narrativa e o jornalismo cidadão, o
que implica voltar às ruas.
Em debate posterior, em resposta a uma
pergunta de Alai, o acadêmico reconheceu o papel central do terceiro setor
nesse processo e acrescentou que esse setor “é estratégico para a regeneração
democrática do tecido. Na América Latina deve ser a ponta de lança fundamental,
pela tradução desse jornalismo do Sul, desde abaixo, de novas práticas, de
outras agendas e outras técnicas de produção em diálogo com as pessoas”.
“Dupla moral”
Sierra apontou duas tarefas pendentes
que até agora não foram assumidas pelos países: “esclarecer o que entendemos
por terceiro setor; e, como organizar uma economia desse terceiro setor”. Sem
desprezar os apoios do orçamento público para financiar os meios comunitários,
o analista recordou que “o desafio também está em ter autonomia e
sustentabilidade em seus projetos”. Por isso, saudou o fato de que a lei
equatoriana – diferente da Espanha e da maioria dos países da Europa –
reconheça a possibilidade de que eles se financiem com patrocínio e
publicidade.
Porém, acrescentou, colocar seriamente a organização da economia
social da comunicação passa por “integração, convergência e plataformas de
meios cidadãos, públicos, de propriedade do Estado – governo central, local ou
autônomo – e, médios sociais da cidadania”. Sierra também se referiu a outra
frente, que é como os meios desse setor “redefinem sua posição nesta
convergência digital das grandes corporações privadas e dos meios públicos”.
Citando o exemplo da Europa, lamentou que a colaboração entre meios públicos e
comunitários seja praticamente inexistente. E colocou a ideia de fazer um pool
de domínio público de meios cidadãos e meios públicos, para compartilhar
produção, publicidade, estratégias e capacidade de organização num marco de
respeito a autonomia. Pois, disse, “não é sustentável esta proliferação de
meios, muito deles morrem na tentativa por puro voluntarismo”. Ainda que possam
ter enfoques diferentes, até mesmo contrapostos, “si se trata de ampliar agenda
cidadão domínio público, crio que os interesses são convergentes”.
Francisco Sierra concluiu reconhecendo
que são muitos os desafios para poder avançar e que faz falta abrir o debate
com a participação ativa de meios comunitários, para refletir sobre como
materializar e desenvolver boas práticas, fato que o novo marco regulador do
Equador poderia facilitar, na medida em que representa “um grande avanço
democrático para o país”.
A entrada em vigência da lei desatou um
confronto de opiniões e critérios dentro e fora do país, em que até agora prima
a campanha de descredito lançada pelos grandes meios diante do que chamam “lei
mordaça”, campanha que se intensificou ao coincidir com a solicitação de asilo
político de Edward Snowden ao Equador, cujo governo é acusado de “dupla moral”.
Sem dúvida a lei não é perfeita; mas sim, consegue efetivamente desatar um
debate de fundo e encaminhar iniciativas para uma mudança de modelo da
comunicação, então este “avanço democrático” do qual fala Francisco Sierra terá
relevância não só para o Equador mas para toda a América Latina.
*Sally Burch é jornalista da Agencia
Latinoamericana de Información (ALAI)
http://www.fndc.org.br/internas.php?p=noticias&cont_key=920270